quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Diciplina


Disciplina

Por Eugenio Mussak

Jean Michel ainda não tinha completado 20 anos, era um soldado do Exército
francês no inverno de 1796, e foi em plena campanha de conquista da Áustria que
ele viveu um momento que mudou seu modo de ver a vida. Tinha atravessado a
noite fazendo vigia em um dos flancos do acampamento e sentia que o cansaço de
suas pernas só não era mais desesperador que seus pés congelados, e que o peso
do fuzil parecia ter-se multiplicado durante a noite. Felizmente logo seria
substituído, e foi exatamente nisso que Jean Michel pensou quando percebeu um
movimento bem atrás de si. Virou-se esperando o soldado que o renderia, mas a
pessoa que ele viu fez com que o frio de seus pés passasse para seu coração,
instantaneamente.
Napoleão Bonaparte em pessoa caminhava sozinho em sua direção com passos
firmes. E o general fez-lhe perguntas que ele poderia esperar de um sargento, ou
no máximo de um capitão, jamais do comandante supremo do poderoso Exército
francês que estava mudando a fisionomia da Europa. Ele, até então, não sabia que
Napoleão se contentava com poucas horas de sono e que, muito cedo, costumava
caminhar pelo acampamento, às vezes surpreendendo seus oficiais.
Mas foi no fim da visita do chefe que Jean Michel – que agora tremia de emoção
mais que de frio –, teve um momento de coragem e atreveuse a dirigir a palavra a
seu comandante supremo:
– Meu general, posso lhe fazer uma pergunta?
Napoleão, um pouco surpreso, assentiu com a cabeça.
– Desculpe minha insolência, mas tenho necessidade de saber uma coisa: que
qualidade eu preciso desenvolver para me transformar em um grande general
algum dia?
O comandante tardou um instante para assimilar a pergunta, depois sorriu
levemente e então disse:
– Se você me pede para que eu indique apenas uma qualidade, aquela que poderá
algum dia transformá-lo, não só em um grande general, mas em um grande
homem, então eu vou lhe dizer, meu jovem. Você precisa desenvolver aquela a
partir da qual todas as outras virtudes virão: você precisa ser disciplinado. Só
assim você se valerá bem do tempo, nosso bem mais precioso. Quanto a mim,
pode ser que, no futuro, eu perca uma batalha, mas jamais perderei um minuto.
Uma (boa) qualidade
Napoleão Bonaparte acabou sendo derrotado pela sua enorme ambição, mas seu
legado de estrategista militar e de homem determinado ainda permanece no
imaginário universal. A disciplina era uma de suas forças, e ele era o primeiro a
admitir isso, além de procurar incutir essa qualidade em todos os que ele liderava.
Acreditava, portanto, que disciplina é algo que se desenvolve.
Hoje, a psicologia dá razão ao corso. Na prática, disciplina é considerada uma
qualidade de comportamento, portanto, algo que pode ser modificado a partir da
decisão e da persistência firme de cada um de nós.
De acordo com o conceito clássico, disciplina é um regime de ordem. Em outras
palavras, é um sistema onde os acontecimentos se processam como previamente
determinado. Quando a disciplina está presente, aquilo que foi proposto será
executado, não há dúvidas quanto a isso.
As famosas resoluções de ano novo, por exemplo, costumam frustrar seus
idealizadores por dois motivos principais. O primeiro é que elas não são, de fato,
colocadas na lista de prioridades. Ficam no campo das probabilidades, e aí, para
serem realizadas, dependem de que não surjam, ao longo do ano que se inicia,
outras necessidades com maior premência. Se “emagrecer” não for prioridade,
“trabalhar” será. Como não podemos não trabalhar, a resolução de emagrecer fica
em segundo plano, enquanto a pessoa não perceber que pode ter mais de uma
prioridade, desde que saiba organizar seu tempo. E isso nos remete ao segundo
grande motivo das frustrações.
O segundo motivo é a indisciplina. Essa é a grande mãe do fracasso. O medo é o
pai. E o fracasso tem também uma madrinha: a ignorância, em seu sentido amplo.
E um padrinho: o planejamento mal feito. Mas, acredite, a indisciplina é a causa
mais cruel, pois não perdoa nunca. Coragem, conhecimento e planejamento são
importantíssimos para o sucesso de uma empreitada, mas ficam impotentes sem a
companhia da disciplina.
Aristóteles, em seu livro Ética a Nicômaco, insistia na disciplina como uma
qualidade da alma; o poder que permite ao homem diferenciar-se dos animais, pois
significa a vitória da razão, a única possibilidade de uma pessoa realizar seus
sonhos. Sem a disciplina e a determinação, qualquer sonho não passará de
devaneio. O filósofo dizia que a “virtude moral é resultado do hábito”. Somos o que
repetidamente fazemos, forjamos o caráter nas atividades diárias, e estas
construirão nosso destino.
Os dois caminhos
Mas cuidado. O regime de ordem citado acima pode ser de dois tipos: imposto ou
livremente consentido. Se for imposto, só vai funcionar mediante controle
permanente, como acontece com o professor que impõe disciplina na sala de aula e
é temido pelos alunos; ou o pai que não admite desobediência de seus filhos, muito
menos discussão sobre suas ordens e determinações. Tal pai conquista o respeito
pela força, mas corre o risco de perder o amor de seus filhos. A disciplina imposta
só funciona por curtos espaços de tempo e é útil em situações de crise, perigo,
dificuldade ou urgência. Não serve para tarefas em longo prazo, como é o caso dos
projetos pessoais de vida.
Já o regime de ordem que é livremente consentido tem outra força, outro poder.
Sustenta-se no tempo e não depende de controle, no máximo de um reforço.
Resoluções pessoais só podem funcionar assim. O que você decide para sua vida
não pode depender de outro, pois a decisão foi sua, e não do outro. A participação
de outros na execução de suas resoluções pode, isso sim, funcionar como uma
parceria, e as parcerias são boas porque catalisam os processos. Encontrar um
companheiro para praticar esporte, ou solicitar à sua mulher que lhe pergunte, de
tempos em tempos, como está indo aquele projeto, são reforços estratégicos muito
úteis. Mas o controle continua sendo seu, pois nada lhe foi imposto no sonho – nem
está sendo agora, na execução.
Você decide, e deve fazê-lo por livre consenso estabelecido entre seus sonhos e
suas potencialidades. Tudo aconteceu dentro de sua cabeça, sem imposição, mando
ou determinação de quem quer que seja. Quando é você que decide, está
exercendo seu livre-arbítrio. Quando realiza com disciplina, está fazendo valer sua
vontade. O disciplinado sem livre-arbítrio é um escravo competente. Um livrepensador
indisciplinado é um boêmio inconseqüente.
Aliados e inimigos
A disciplina, é necessário reconhecer, tem lá seus inimigos. Vejo dois: a indolência
e a dúvida. A indolência é o diabinho que sussurra em nosso ouvido coisas como:
“Deixa para depois!”; “Fique mais um pouquinho na cama, o que é que há de mal
nisso?”; “Não se preocupe, se você ficar bem quietinho, a vontade de trabalhar
passa!”; “Ninguém faz, por que logo você deveria fazer?” E por aí vai. O repertório
de convencimento do capetinha da indolência é quase infinito. Cuidado com ele!
Quanto à dúvida, bem, essa tem causas mais profundas, pertence ao misterioso
mundo do autoconhecimento. Cuidado, pois resoluções pessoais não podem dar
espaço para as dúvidas. Se você pretende plantar um jardim, não pode duvidar de
seu apreço pelas flores. Se uma resolução é fraca, será dominada pela dúvida, e
esta vem acompanhada da acomodação, do desânimo e da desesperança. Eta
turminha da pesada! Mas não se esqueça de que esses três só entram na festa se
forem convidados pela dúvida. Portanto, não crie, em sua cabeça, projetos em que
você não acredita, objetivos definidos por outros, sonhos mal sonhados. Todos eles
abrem espaço para a dúvida, e esta arruma a cama da indisciplina, em que ela
dormirá o sono letárgico de uma vida sem sentido.
A idéia da disciplina carrega consigo um arsenal de meios que poderiam ser
entendidos como outras resoluções. Mas não, elas são um só conjunto, uma só
decisão, compartimentada, mas única. E a noção da disciplina é a mais abrangente
– a ave sob cujas asas se acomodam os componentes da esperança com base, do
sonho com certeza, do amor compartilhado.
Em latim, disciplina significa ensino, por isso usamos essa palavra também para
designar áreas do conhecimento. Matemática, história, biologia são exemplos de
disciplinas escolares. Há, portanto, uma conexão entre a disciplina e o aprendizado.
Aliás, a palavra disciplina tem a mesma origem da palavra discípulo. O mestre
disciplina um jovem para que ele aprenda, se desenvolva, torne-se autônomo e
produtivo. O jovem que o mestre disciplina é, portanto, seu discípulo.
No sentido pessoal, a disciplina aumenta nossa capacidade de aprender e, a partir
disso, realizar. Quem se disciplina torna-se, ao mesmo tempo, mestre e discípulo.
Aprendem, produzem, criam, alcançam os resultados com que sonham. E, o mais
importante, são mais livres. A disciplina não aprisiona, liberta você da pressão
externa e do sofrimento que vem dos sonhos não realizados, das frustrações
autoprovocadas, da miséria da desesperança. Aliás, Renato Russo nos disse que
“disciplina é liberdade”. Pois é. Do filósofo grego ao imperador francês,
encontramos a idéia de que uma mente livre é uma mente disciplinada. Porque as
pessoas disciplinadas são mestras de si mesmas.

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